Aleatório: Ficção humana - Quando os personagens são “reais”

A indústria do entretenimento ficcional, que passa da literatura até ao cinema, costuma expor ideias, conceitos e histórias que retratam o cotidiano comum de diversas maneiras diferentes. Em essência o foco principal é mostrar algo exagerado ou deturpado. Em um filme de ação dos anos oitenta a violência exagerada não demonstrava a realidade do mundo através dos músculos de Arnold Schwarzenegger. Mesmo sem magia ou misticismo os filmes do maior herói de ação de todos os tempos podem ser considerados fantasias urbanas.
Por outro lado, em Robocop, Tropas Estrelares e O Vingador do Futuro, sendo o último estrelado pelo próprio Arnold, Paul Verhoeven expõe vísceras escrachadas como meio de crítica a sua sociedade vigente. A ficção sempre é usada para fazer um retrato caricato ou levemente realista do mundo em que vivemos.

Em X-Men os mutantes são utilizados para representam as minorias de movimentos negros e homossexuais, mas em suma poucos de seus personagens e autores são negros ou homossexuais. Novamente a ficção expõe conceitos sem mostrar o viés realístico. Só em tempos mais modernos conseguimos ver essas minorias diretamente retratadas nas histórias em quadrinhos e nas mídias em geral. Os X-Men já possuíam a Tempestade nessa época, mas mesmo assim ela era um ponto solitário em meio a uma grande maioria branca.

Nesse artigo vou mostrar algumas histórias onde podemos ver claramente um ser humano em ação. Não estou falando necessariamente em críticas sociais, os exemplos supracitados são apenas uma demonstração de como a ficção não se importa muito com a realidade. O objetivo é mostrar na ficção personagens que poderiam estar andando na rua como qualquer pessoa comum e você acreditaria que eles são reais. Uma ficção humana, por assim dizer.

As Vantagens de Ser Invisível

Filmes sobre adolescência são sempre divertidos, mas são poucos que mostram essa fase intensa da vida de maneira natural. O clássico Clube dos Cinco, por exemplo, aborda cinco estereótipos de pessoas de modo caricato. Por sua vez, As Vantagens de Ser Invisível mostra com muita sutileza as alegrias e angústias na vida de um grupo de amigos desajustados. A história consegue conversar muito bem com o seu público-alvo mesmo retratando a vida de pessoas na década de oitenta.

Ao lado de O Maravilhoso Agora (Spectacular Now), As Vantagens de Ser Invisível tem uma das melhores retratações das conturbações da adolescência já feitas na grande tela.

Central do Brasil
De longe um dos filmes nacionais mais renomados no Brasil e no Mundo. Porém, não é por isso que Central do Brasil está sendo citado nessa lista modesta. Dora, interpretada por Fernanda Montenegro, é uma mulher que escreve cartas para pessoas analfabetas na central do Brasil. Ela fica incumbida de levar um menino de nove anos, Josué, ao encontro do seu pai no Nordeste. Na história ela havia escrito uma carta para a mãe do menino, que falecera em um acidente após sair da estação.

No decorrer da história nós conseguiremos ver uma das melhores retratações de migrantes brasileiros em uma película cinematográfica. A interação da Dora, Josué e das pessoas que eles encontram no caminho de sua viagem é realmente bem humana. Você consegue olhar para os personagens e dizer que esse tipo de pessoa realmente existe em nosso simpático país tropical. Mesmo depois de muitos anos nós conseguimos enxergar em Central do Brasil o viés humano retratado em cada personagem da trama.
Whiplash
Antes de dar continuidade ao artigo devo pedir desculpas pelo linguajar chulo desse tópico. Portanto, desculpa.

Whiplash tem a melhor representação de filhos da puta que já vi em um filme. Nós não queremos conviver com esse tipo de pessoa desprezível, mas ambos, o protagonista e seu instrutor de música, existem no mundo real e com um breve pensamento é possível reconhecer esse tipo de indivíduo obcecado que não se importa com quem está ao seu redor.

Normalmente nós vemos esse tipo de personagem sendo representado de forma mais caricata, mas em Whiplash esses dois arrombados podem ser facilmente confundidos com qualquer pessoa que você já tenha conhecido. Sim, você conhece, mas não precisa apontar para ninguém.

Miss Marvel (Kamala Khan)
Kamala está aqui para nos provar que ainda é possível ser bem humana vivendo em um mundo de fantasia. O melhor quadrinho mensal da Marvel nos últimos anos consegue mostrar de maneira simples a vida de imigrantes e seus descendentes nos Estados Unidos. O toque fantástico da história não atrapalha a representação humana da protagonista.

A Kamala é o tipo de pessoa que você adoraria sair para jogar conversa fora. É isso que faz da inumana um personagem tão humano. As relações, desde o convívio com a família islâmica as amizades com descendentes de italianos e outros adolescentes que se encaixam no padrão norte-americano, fazem da Kamala a melhor representação da vida do adolescente moderno de uma maneira que o próprio Peter Parker não conseguiu em seu auge.

Genshiken
Existe alguma maneira de representar estereótipos sem ser óbvio ou jocoso? Sim, existe, mas fazer isso não é uma tarefa para qualquer um. Genshiken merece um destaque nessa lista justamente por mostrar a vida de otakus em sua simplicidade e esquisitices.

O seu autor, Shimoku Kio, consegue desenvolver diversos detalhes da vida desse grupo peculiar de pessoas de um modo bem natural. Essa naturalidade faz de Genshiken uma obra sui generis. Mais uma vez podemos dizer que os personagens são seres humanos reais, daquele tipo que você tromba no metrô sem pedir desculpas ou se preocupar se amassou ou não suas revistinhas na sacola.

Sakamichi no Apollon
Sakemichi no Apollon é a história que me motivou a escrever esse artigo. No manga de Yuri Kodama e anime dirigido por Shinichiro Watanabe, de Cowboy Bebop e Samurai Champloo, nós acompanhamos o convívio de dois adolescentes de personalidades distintas que passam a interagir através da música, no caso, o jazz de improviso.

A história que não dispõe de acontecimentos extraordinários consegue mostrar o incrível nos aspectos ordinários da vida em que os dois protagonistas levam juntos. Porém, o enredo não se limita a isso. O que começa com uma interação entre duas pessoas, Kaoru e Sentaro, acaba virando uma série profunda de relações entre essa pequena sociedade de pessoas – os dois amigos, amores, famílias, colegas e afins.

Sakemichi no Apollon não só consegue retratar o conflito na vida de adolescentes como também mostra jovens adultos e adultos de forma sublime. Não é apenas a sensação de que aquela pessoa poderia ser real, toda a vida exposta na cidade onde a história passa é passível de ser confundida com a realidade.

Outro ponto interessante nesse sentido é que a história se passa na década de sessenta, então nós não só nos identificamos como também vislumbramos o comportamento e a condição social das pessoas em uma cidadezinha do interior duas décadas depois os males da segunda guerra mundial. 

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